O princípio da
legalidade encontra-se consagrado na Constituição de República Portuguesa desde
a Constituição de 1976, embora a sua origem anteceda ao período liberal entre
os séculos XVIII e XIX.
Marcado pelo
corte com a política do Estado Absoluto (monarquia limitada) e do Estado
Polícia (monarquia absoluta), onde a existência de um poder total do monarca
(prerrogativa régia) fazia com que este não estivesse sujeito ao Direito, e
onde a intervenção do Estado no domínio privado era avassaladora, o período do
Estado Liberal abre caminho para a defesa da esfera social e individual,
limitando o poder estatal a nível jurídico e a nível político.
Competiu a
Rousseau, através do seu pensamento crítico feito à sociedade e ao poder
político, “teorizar” acerca da ideia do princípio da legalidade. Com base no
seu livro, “O Contrato Social” de 1762, onde o filósofo francês descreve a sua
teoria sobre o “mito do bom selvagem” - ideia de que o homem nasce livre e bom,
mas que é posteriormente corrompido pela sociedade - e a passagem de um “estado
natureza” ao “estado de sociedade”, emergem valores de garantia de igualdade e
liberdade sociais e individuais e forte crítica ao poder dos mais ricos e mais
fortes que conseguem, através de um “contrato social falso”, impor-se aos mais
podres e mais fracos. A dura batalha de Rousseau consistiu em, através de um
“contrato social honesto”, onde os homens existem todos por igual e livres,
mudar o regime político e o sistema de governo. “É um programa de ação política; é um projeto de Revolução; e é um
projeto de nova Constituição”[1],
apela Rousseau aos homens do futuro.
E, penso que com
a sua marca deixada na história do pensamento político e filosófico do seu
tempo, Rousseau chega aos nossos tempos com grande relevo.
O princípio da
legalidade abrange duas modalidades. São elas, a preferência de lei e a reserva
de lei.
“A primeira veda à administração que
contrarie o direito vigente, que em casa de conflito preferirá ao acto
administração em causa – preferência de lei. Na segunda, exige-se que a atuação
administrativa, mesmo que contrária ao direito, tenha fundamento numa norma
jurídica, à qual está reservada a definição primária das atuações possíveis –
reserva de lei.”[2]
Ainda sobre a
reserva de lei, esta divide-se em precedência de lei e reserva de densificação
normativa, ou seja, a existência de um “critério
de regulação da intensidade da normação legislativa: da intensidade mínima
postulada pela reserva de função (competência e fim) à intensidade máxima
exigida pela reserva parlamentar (vinculação, no essencial, do conteúdo) ”.[3]
É ainda
importante fazer referência à forma como foi tratado o princípio da legalidade
nos regimes autoritários de direita e nos sistemas comunistas.
Nos regimes
autoritários de direita, de que fez parte a Constituição Portuguesa de
1933, o princípio da legalidade continua a existir, mas com outros contornos. A
noção de legitimidade democrática dos séculos passados perdeu-se e configura-se
a subordinação da atuação administrativa ao poder executivo, ou seja, ao
Governo, que passa a legislar sob a forma de decretos-lei. Assim, o princípio
de legalidade torna-se uma garantia de proteção do Estado, sendo que só em
segundo plano atinge os particulares.
Em regimes
comunistas, o princípio da legalidade fica esvaziado da sua força
limitadora, passando a ser uma ferramenta de trabalho do partido único
(comunista). Fala-se, então, de uma legalidade comunista, onde a legitimidade
resulta da interpretação dos ditamos proferidos pela ideologia comunista.
Apesar de a sua
consagração constitucional só ter acontecido na Constituição de 1976, podemos
verificar que, ao longo dos textos constitucionais portugueses, há referência
não ao princípio da legalidade como o conhecemos no artigo 266º do CRP, mas à
ideia de conduta conforme a lei, seja ela geral ou especial.
Vejamos.
v Constituição de 1822
A)
Base
da Constituição
Secção II – Da Nação Portuguesa,
Sua Religião, Governo e Dinastia
18º - O seu Governo é a
Monarquia constitucional hereditária, com leis fundamentais que regulem o
exercício dos três poderes políticos
B)
Constituição
de 23 de Setembro de 1822
Título II – Da Nação Portuguesa,
e seu Território, Religião, Governo e Dinastia
Capítulo Único
Artigo 29 – O Governo da Nação
Portuguesa é a Monarquia constitucional hereditária, com leis fundamentais que
regulem o exercício dos três poderes políticos.
Artigo 30 – Estes poderes são
legislativo, executivo e judicial. O primeiro reside nas Cortes com dependência
da sanção do Rei (arts. 101º, 111º e 112º). O segundo está no Rei e nos
Secretários de Estado, que exercitam debaixo da autoridade do mesmo Rei. O
terceiro está nos Juízes.
Título VI – Do Governo
Administrativo e Económico
Capítulo I – Dos Administradores
gerais e das juntas de Administração
Artigo 217º - A lei designará
explicitamente as atribuições dos Administradores gerais e das Juntas de
administração; as fórmulas dos seus atos; o número, obrigações e ordenado de
seus oficiais; e tudo o que convier ao melhor desempenho desta
instituição.
Nesta fase, D. João VI era o rei de Portugal e o país vivia um momento
marcante para a história e para a política portuguesa. A Constituição de 1822
foi o primeiro texto constitucional depois do fim da monarquia absoluta, que
marcou o início da democracia parlamentar no nosso país. Deu-se após as
revoluções liberais, no Porto, e surgiu através dos trabalhos das Cortes Gerais
Extraordinárias e Constituintes.
O primeiro texto constitucional
teve influência das Constituições Francesas de 1871 e 1875 e da Constituição
Espanhola de Cádis de 1812 e mostrou-se embebida do espírito liberal da Europa,
trazido com os princípios de Liberdade, Igualdade e Fraternidade da Revolução
Francesa, em 1789.
A concretização do princípio da
separação de poderes foi uma realidade nesta Constituição que, apesar de ditar
a existência de três poderes (legislativo, executivo e judicial), continuava a
conferir ao Rei poder e supremacia. É a chamada monarquia limitada, referida
epígrafe, onde o representante do poder executivo detinha também funções
legislativas como o direito de veto suspensivo sobre as Cortes, embora fosse
obrigado a promulga-las desde que as Cortes voltassem a deliberar. Apesar de
tudo, a sua figura era praticamente inviolável e, nesse sentido, podemos
considerar que, nesta fase, ainda estaríamos longe do princípio da legalidade
como fundamento de garantia democrático, na medida em que o Direito à margem do
monarca.
v
Carta
Constitucional de 1826 de 29 de Abril de 1826
Título I – Do Reino de Portugal,
seu Território, Governo, Dinastia e Religião
Artigo 4º - O seu Governo é
Monárquico, Hereditário e Representativo.
Título V – Do Rei
Capítulo I – Do Poder Moderador
Artigo 71º - O Poder Moderador é
a chave de toda a organização política, e compete privativamente ao Rei, como
Chefe Supremo da Nação, para que incessantemente vele sobre a manutenção da
independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos.
A Carta Constitucional, que foi outorgada pelo rei D. Pedro IV (D.
Pedro I, do Brasil), teve a influência da Constituição Brasileira de 1824, da
Constituição Francesa de 1814 e, também, da anterior constituição portuguesa.
Esteve em vigor 72 anos e revelou-se muito menos revolucionária do que a
missiva anterior, mas manteve o caracter liberal trazido dos finais do séc.
XVIII.
A inovação na Carta
Constitucional é a criação do poder moderador que funciona como quarto poder e
através deve evidencia-se o princípio monárquico, pelo facto de o Rei deter
ainda mais poderes do que aqueles que o poder executivo lhe conferia.
Mantém-se a ideia de monarquia
limitada, onde apesar de todas as alterações, mantém o rei num lugar de destaque
face à lei e a subordinação do povo à lei e ao seu soberano.
v Constituição de 1838 de 4 de Abril de 1838
Título I – Do Reino de Portugal,
seu Território, Religião, Governo e Dinastia
Capítulo Único
Artigo 4º - O Governo da Nação
Portuguesa é Monárquico-hereditário e representativo.
A terceira constituição nasce da
revolução de setembro de 1836, abolindo a Carta Constitucional e fazendo entrar
em vigor, por dois anos, a primeira constituição. Em 1838 é, então, publicada.
Desaparece o poder moderador, deu ao rei o direito de veto absoluto e instituiu
a descentralização administrativa. Nesta época, estava no trono D. Maria II,
filha de D. Pedro IV.
v Constituição de 1911 de 21 de Agosto de
1911
Título I – Da Forma do Governo e
do Território da Nação Portuguesa
Artigo 1º - A Nação Portuguesa,
organiza em Estado Unitário, adota como forma de governo a República, nos
termos desta Constituição.
Naquela que foi a primeira constituição republicana portuguesa, a
Constituição de 1911 teve como fontes a Constituição Brasileira de 1891 e o
programa do Partido Republicano Português.
Apesar de ter durado por 100 anos, muitos historiadores afirmam que a
única mudança verdadeira foi a passagem do rei para presidente.
Nesta fase, o poder legislativo cabia ao Congresso da República que se
dividia na Câmara dos Deputados e no Senado. O poder executivo pertencia ao
Presidente da República e aos Ministros, estando o poder judicial sujeito aos
tribunais.
v Constituição de 1933
Título VII – Da Ordem Política,
Administrativa e Civil
Artigo 22º
Os funcionários públicos estão
ao serviço da coletividade e não de qualquer partido ou organização de
interesses particulares, incumbindo-lhes acatar e fazer respeitar a autoridade
do Estado.
A Constituição que prevaleceu durante o período de Estado Novo entrou
em vigor em 1933 e teve como influências a Constituição de 1911, a Carta
Constitucional e as Constituições alemãs de 1871 e 1919.
Este tipo de constituição, como já foi referido, coloca a ênfase no coletivo,
levando para segundo plano as necessidades individuais. Neste sentido, penso
que, o ideal do princípio da legalidade encontra-se mais distante do que nas
constituições anteriores.
v Constituição de 1976
É na Constituição de 1976, ainda
vigente em Portugal, que se consagra o princípio da legalidade.
Título IX
Administração Pública
Art. 267º (princípios
fundamentais)
2. Os órgãos e agentes
administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar com
justiça e imparcialidade no exercício das suas funções.
No nº 2 do artigo 266º da CRP
encontram-se vários princípios que em conjunto com os princípios inscritos no
nº 1 dão origem ao que se costuma chamar como medidas materiais da juridicidade
administrativa. Isto significa que, para além destes princípios elencados, há
lugar a outros.
Para além da subordinação à
Constituição como fonte máxima de direito nacional, há também o dever de
subordinação à lei e com isto ao princípio da legalidade que compreende duas
dimensões: em sentido negativo (ou primado da lei) e em sentido positivo (ou
precedência de lei).
O princípio da legalidade em
sentido negativo abrange todos os tipos de administração (central, regional e
local; direta, indireta e independente; coativa, prestadora, reguladora ou de
supervisão) e a atividade administrativa, sob pena de gerar ilegalidade.
Esta primeira configuração do
princípio da legalidade foi gerada pelo período liberal, onde o limite à
atuação administrativa era a lei (parlamentar), que tinha por objetivo a
proteção dos direitos das particulares. Isto deveu-se ao facto de coexistirem,
na época, dois tipos de legitimidade. Por um lado, a legitimidade do poder
executivo que, pela figura do rei, era uma legitimidade hierárquica e, por
outro, a legitimidade do poder legislativo, representado pelo Parlamento, que
era uma legitimidade democrática. Desta forma, a Administração Pública está submetida
“às ordens do soberano, depende hierarquicamente dele, e por isso pode fazer
tudo aquilo que ele lhe ordenar, exceto o que for proibido através de lei
votada no Parlamento”.[4]
No entanto, parece não ser tão
claro, nas notas nos professores Gomes Canotilho e Vital Moreira, a abrangência
do princípio da legalidade em sentido positivo.
“É controvertido saber se ele
vale em igual medida e com igual intensidade para a administração coativa e
para a administração de prestações e hoje, ainda, para a administração de
garantia”.
Reflete-se também sobre a ideia
de que talvez a Constituição fosse vista como lei, falando-se em execução
imediata ou direta ou constituição.
Lei refere-se num sentido amplo,
englobando lei da Assembleia da República, decretos-leis, decretos-legislativos
regionais, como também as normas de direito internacional e direito europeu.
(art. 8 CRP). Juntam-se a estes a vinculação aos próprios regulamentos
administrativos competentes. Neste seguimento, há a ressalvar que o princípio
da legalidade funda-se no princípio da juridicidade da administração, pois,
neste sentido, todo o direito é fundamento e pressuposto da atividade da
Administração.
A presente
Constituição sofreu algumas revisões constitucionais.
1.
Lei constitucional nº 1/82 de 30 de Setembro
§
Artigo 198:
Os artigos 266º e 267º passam a
constituir, respetivamente, os novos artigos 265º e 266º.
2.
Lei constitucional nº 1/89 de 8 de Julho
§
Artigo 173:
O nº 2 do artigo 266º é
substituído por:
2. Os órgãos e agentes
administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no
exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da
proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade.
3.
Lei constitucional nº 1/92 de 25 de Novembro –
sem alterações
4.
Lei constitucional nº 1/97 de 20 de Setembro
§
Artigo 180:
Ao nº2 do artigo 266º da
Constituição é aditada, in fine, a
expressão “e da Boa-Fé”
5.
Lei constitucional nº 1/2001 – sem alterações
6.
Lei constitucional nº 1/2004 – sem alterações
7.
Atual texto da Constituição
Art. 266º – Princípios
Fundamentais
1. A Administração Pública visa a prossecução
do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente
protegidos dos cidadãos.
2.
Os
órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e
devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da
igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.
O princípio da legalidade, tal como o próprio Direito
Administrativo, são relativamente recentes e isso é possível de ser verificado
pela análise aos textos constitucionais. Todos eles fizeram parte de momentos
importantes da história política não só do nosso país, mas da Europa. No fundo,
acabámos por seguir os modelos que foram surgindo nos países vizinhos,
aplicando-os à nossa realidade.
Apesar de, nos dias de hoje, ser consciente que a
atividade administrativa deva proceder conforme a lei em sentido amplo e que os
interesses dos particulares devem ser garantidos, esta ideia nem sempre foi um
dado adquirido. Na realidade, isso só ficou presente há 40 anos com a Revolução
de Abril. O longo período desde o liberalismo, passando pela República, até ao
Estado Novo privou os particulares de verem os seus direitos garantidos. Ou
ainda, a preocupação em dar lugar ao indivíduo na vida social, económica e
política foi feita paulatinamente ao longo das décadas. Exemplo concreto disso
foi a evolução do sufrágio.
E, mesmo em 40 anos, houve necessidade de alterar a
configuração do artigo que consagra o princípio da legalidade na Administração
Pública, pelo que se conclui que muito caminho ainda há a percorrer sobre os
direitos dos particulares perante a atuação do Estado.
Isabel Rodrigues nº 15613
[1] História
das Ideias Política, Diogo Freitas do Amaral, pág. 221
[2] Direito
Administrativo Geral, Tomo I, Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos, 1ª
edição, pág. 153
[3] Vieira
de Andrade, O Ordenamento Jurídico Administrativo, pág. 40
[4][4]
Curso de Direito Administrativo, Diogo Freitas do Amaral, 4ª edição, Vol. II,
Pág. 45
Sem comentários:
Enviar um comentário