A ILEGALIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO
Considerações Preliminares
Um acto administrativo que viola a lei é um ato administrativo ilegal.
A ilegalidade foi durante muito tempo considerada
como sendo a única fonte da invalidade: entendia-se que todo o acto administrativo
ilegal era inválido, e que todo o acto administrativo inválido o era por ser
ilegal.
A única fonte da invalidade seria, pois, a ilegalidade.
A Ilegalidade do Ato Administrativo.
Quando se diz que um acto administrativo é ilegal, ou contrário à lei,
está a usar-se a palavra “lei” num sentido muito amplo. Neste
sentido a legalidade inclui todo o bloco normativo (Constituição, lei
ordinária, os regulamentos).
A ilegalidade do acto administrativo pode assumir várias formas ou vícios do acto administrativo. Por conseguinte, os “vícios
do acto administrativo” são as formas específicas que a ilegalidade
do acto administrativo pode revestir:
A invalidade do acto administrativo, é o juízo de
desvalor emitido sobre ele, em resultado da sua desconformidade com a ordem
jurídica. As duas causas geralmente admitidas da invalidade são a ilegalidade e
os vícios da vontade.
A ilegalidade do acto administrativo é tradicionalmente apreciada entre nós
através da verificação dos chamados vícios do acto,
modalidades típicas que tal ilegalidade pode revestir e que, historicamente, assumiram o papel de limitar a impugnabilidade contenciosa dos actos
administrativos.
Os Vícios do Acto Administrativo
A tipologia dos vícios comporta cinco vícios:
1. Usurpação
de poder;
2.
Incompetência;
3. Vícios de
forma;
4. Violação
de lei;
5. Desvio de
poder.
Os dois primeiros vícios (usurpação de poder e incompetência), correspondem
à ideia de ilegalidade orgânica.
O terceiro (vício de forma) corresponde à ideia de ilegalidade
formal.
E o quarto e o quinto (violação de lei e desvio de poder) correspondem à
ideia de ilegalidade material.
A Usurpação de Poder
Consiste na ofensa por um órgão da Administração Pública do princípio da
separação de poderes, por via da prática de acto incluído nas atribuições do
poder judicial ou do poder administrativo (Art.º 161 CPA). Comporta duas
modalidades:
- A primeira é a usurpação do
poder legislativo: a Administração prática um acto que pertence às
atribuições do poder legislativo;
- A segunda é a usurpação
do poder judicial: a Administração prática um acto que pertence às
atribuições dos Tribunais.
Entende-se também haver usurpação do poder judicial quando a Administração
pratica um acto incluído nas atribuições de um Tribunal Arbitral.
A Incompetência
É o vício que consiste na prática, por um órgão da Administração, de um acto
incluído nas atribuições ou na competência de outro órgão da Administração.
Pode revestir várias modalidades.
Segundo um primeiro critério, pode classificar-se em incompetência
absoluta ou incompetência por falta de atribuições, é aquela que
se verifica quando um órgão da Administração pratica um acto fora das
atribuições da pessoa colectiva a que pertence; e incompetência
relativa ou incompetência por falta de competência, é aquela que
se verifica quando um órgão de uma pessoa colectiva pública pratica um acto que
está fora da sua competência, mas que pertence à competência de outro órgão da
mesma pessoa colectiva.
De acordo com um segundo critério pode-se distinguir quatro modalidades:
1.
Incompetência em razão da matéria: quando um órgão da Administração invade os poderes conferidos a outro
órgão da Administração em função da natureza dos assuntos.
2.
Incompetência em razão da hierarquia: quando se invadem os poderes conferidos a outro
órgão em função do grau hierárquico, nomeadamente quando o subalterno invade a
competência do superior, ou quando o superior invade a competência própria ou
exclusiva do subalterno.
3.
Incompetência em razão do lugar: quando um órgão da Administração invade os poderes conferidos a outro
órgão em função do território.
4.
Incompetência em razão do tempo: quando um órgão da Administração exerce os seus poderes legais em
relação ao passado ou em relação ao futuro (salvo se a lei, excepcionalmente, o
permitir).
O Vício de Forma
É o vício que consiste na preterição de formalidades essenciais ou na
carência de forma legal, comporta três modalidades:
a)
Preterição de formalidades anteriores à prática do acto;
b)
Preterição de formalidades relativas à prática do acto;
c) Carência
de forma legal.
É conveniente sublinhar que a eventual preterição de formalidades
posteriores à prática do acto administrativo não produz ilegalidade (nem
invalidade) do acto administrativo – apenas pode torná-lo ineficaz.
Isto porque, a validade de um acto administrativo se afere sempre pela
conformidade desse acto com a lei no momento em que ele é praticado.
A Violação da Lei
É o vício que consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objecto do acto
e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis.
O vício de violação de lei, assim definido, configura uma ilegalidade de
natureza material: neste caso, é a própria substância do acto administrativo, é
a decisão em que o acto consiste, contrária a lei.
A ofensa da lei não se verifica aqui nem a competência do órgão, nem nas
formalidades ou na forma que o ato reveste, nem o fim tido em vista, mas no
próprio conteúdo ou no objecto do acto.
O vício de violação de lei produz-se normalmente quando, no
exercício de poderes vinculados, a Administração decida coisa
diversa do que a lei estabelece ou nada decide quando a lei manda decidir algo.
Mas também pode ocorrer um vício de violação no exercício de
poderes discricionários.
Quando sejam infringidos os princípios gerais que limitam ou condicionam,
de forma genérica, a discricionariedade administrativa, designadamente os
princípios constitucionais:
o princípio da imparcialidade, o princípio da igualdade, o princípio da
justiça, etc.
Se é verdade que o desvio de poder só se pode verificar no exercício de
poderes discricionários, já não é verdade que não possa verificar-se violação
de lei no exercício de poderes discricionários.
A violação da lei, assim definida, comporta várias modalidades:
1. A falta
de base legal, isto é a prática de um acto administrativo quando
nenhuma lei autoriza a prática de um acto desse tipo;
2. A incerteza,
ilegalidade ou impossibilidade do conteúdo do acto administrativo;
3. A incerteza,
ilegalidade ou impossibilidade do objecto do acto administrativo;
4. A inexistência
ou ilegalidade dos pressupostos relativos ao conteúdo ou ao objecto do
acto administrativo;
5. A ilegalidade
dos elementos acessórios incluídos pela Administração no conteúdo do acto –
designadamente, condição, termo ou modo;
6. Qualquer
outra ilegalidade do acto administrativo insusceptível de
ser reconduzida a outro vício. Este último especto significa que o
vício de violação de lei tem carácter residual, abrangendo
todas as ilegalidades que não caibam especificamente em nenhum dos outros
vícios.
O Desvio de Poder
É o vício que consiste no exercício de um poder discricionário por um
motivo principalmente determinante que não condiga com o fim que a lei visou ao
conferir aquele poder.
O desvio de poder pressupõe, portanto, uma discrepância entre o fim legal e
o fim real. Para determinar a existência de um vício de desvio de poder, tem de
se proceder às seguintes operações:
1. Apurar
qual o fim visado pela lei ao conferir a certo órgão administrativo um
determinado poder discricionário (fim legal);
2. Averiguar
qual o motivo principal determinante da prática do ato administrativo em causa
(fim real);
3.
Determinar se este motivo principalmente determinante condiz ou não com aquele
fim legalmente estabelecido: se houver coincidência, o ato será legal e,
portanto, válido; se não houver coincidência, o ato será ilegal por desvio de
poder e, portanto, inválido.
O desvio de poder comporta duas modalidades principais:
A) O desvio
de poder por motivo de interesse público, quando a
Administração visa alcançar um fim de interesse público, embora diverso daquele
que a lei impõe.
B) E desvio
de poder por motivo de interesse privado, quando a
Administração não prossegue um fim de interesse público mas um fim de interesse
privado. (Prof. Freitas do Amaral diz que é sempre corrupção).
Cumulação de Vícios
Um acto administrativo pode estar ferido simultaneamente de várias
ilegalidades: os vícios são cumuláveis. E pode inclusivamente acontecer que
haja mais de um vício do mesmo tipo: pode haver dois vícios de forma, três
incompetências, quatro violações de lei, no mesmo acto administrativo.
Assim, se um mesmo acto viola várias leis, ou várias disposições da mesma
lei, cada ofensa da lei é um vício. É possível, portanto, alegar
simultaneamente quaisquer vícios do acto administrativo.
Um acto administrativo ou é vinculado ou e discricionário. Se for vinculado,
pode ser arguido de violação de lei mas não pode ser arguido de desvio de
poder. Se for discricionário, não pode ser arguido de violação de lei, só pode
ser arguido de desvio de poder.
A Ilicitude do
Acto Administrativo
Em regra, a ilicitude do acto administrativo coincide com a sua ilegalidade,
quer dizer: o acto é ilícito por ser ilegal. Mas há casos, em que um acto é
ilícito sem ser ilegal, havendo ilicitude sem haver ilegalidade. Esses casos
são quatro:
1. Casos em
que o acto administrativo, sem violar a lei, ofende um direito absoluto de um
particular. A ofensa de um direito absoluto de um particular é um acto ilícito.
2. Casos em
que o acto administrativo viola um contrato não administrativo (ilicitude).
3. Casos em
que o acto administrativo ofende a ordem pública ou os bons costumes.
4. Casos em
que o acto administrativo contém uma forma de usura.
Os Vícios da Vontade no Acto Administrativo
Como segunda causa da invalidade do acto administrativo diversa da
ilegalidade, há que considerar os vícios da vontade, designadamente o erro, o
dolo e a coação.
Se um órgão da Administração se engana quanto aos factos com base nos quais
pratica um acto administrativo e pratica um acto baseado em erro de facto; ou é
enganado por um particular que pretende obter um certo acto administrativo e o
acto é viciado por dolo; ou é forçado a praticar um acto sob ameaça (coação) –
não se pode dizer que a Administração Pública tenha violado a lei. Nestes casos,
o acto administrativo não ofende a lei, não infringe a lei.
A falta de um requisito de validade que a lei exige, qual seja o de que a
vontade da Administração seja uma vontade esclarecida e livre.
Na base do acto administrativo, e designadamente na base do acto
administrativo praticado no exercício de poderes discricionários, deve estar
sempre, segundo a nossa lei, uma vontade esclarecida e livre. Se a vontade da
Administração não foi esclarecida e livre, porque foi determinada por erro,
dolo ou coação, há um vício da vontade, que deve fundamentar a invalidade do
acto.
Tratando-se de actos vinculados, aí sim, os vícios
da vontade como tais são irrelevantes: ou a Administração aplicou correctamente
a lei, e não interessa para nada saber se o fez porque a interpretou bem apesar
de ter ocorrido algum erro, dolo ou coação – pelo que o acto é válido; ou a
Administração violou a lei – e o acto é ilegal, seja qual for a razão ou a causa
desta ilegalidade.
Mas se se tratar de actos discricionários, as coisas
mudam completamente de figura: a vontade real do órgão administrativo torna-se
relevante, porque a lei lhe deu liberdade de opção, e foi no exercício desta
que a decisão foi tomada. Ora a lei não pode aceitar como manifestação de
liberdade de opção uma vontade não livre ou não esclarecida, aqui os vícios da
vontade têm relevância autónoma.
Ana Ferreira Real
Nº FDUL: 28379
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