domingo, 29 de maio de 2016

BREVÍSSIMA NOTA SOBRE A "ESQUIZOFRENIA DISCRICIONÁRIA"


De: Rodrigo Alexander Davidson de Sousa-Pinto (TAN7/aluno nº 2929)


Quando estudámos o poder discricionário da Administração, foi-nos dado conhecer o seu conceito, a sua natureza, fundamento e significado, o seu âmbito e os seus limites, o controlo do seu exercício e até figuras que podemos (ou não) considerar afins, entre outras abordagens à figura. Vi-mo-la, à discricionaridade, sob vários pontos de vista e até a configurámos de forma sensorial através de uma receita culinária (a “omeleta da quinta”, que nos trouxe o Prof. Vasco Pereira da Silva, pela mão de Maigret, num dos livros de George Simenon).

Enfim, apreendemos o seu conceito e, se tivéssemos que o transmitir a alguém sob ameaça de execução em caso de sermos longos de mais, ver-nos-íamos certamente em apuros! Mas, esta brevíssima nota não pretende dar uma definição de discricionaridade (precisamente por ser brevíssima). Tomemo-la como já sabida e partamos para uma manifestação dela que preocupa por podermos estar perante uma sintomatologia de esquizofrenia desta figura: a discricionariedade imprópria.

Ora, sabemos de antemão que a discricionaridade não é um poder de liberdade da Administração, “mas um poder-dever jurídico[1], isto é, “uma competência, uma tarefa, corresponde a uma função jurídica[2].

Aprendemos igualmente que quase todos os actos administrativos comportam uma convivência permanente de aspectos vinculados e discricionários, o que os conduz a uma decisão condicionada, guiada ou orientada pela racionalidade ou propósito dos princípios e regras gerais que vinculam absolutamente a Administração Pública. Mas, também limitada pelo seu fim legal e pela competência do órgão actuante. Existe assim uma união umbilical permanente e sem possibilidade de corte com o elemento teleológico por detrás da intenção de atribuição da discricionaridade. Aventuraria a dizer que, como para a boa-fé, não pode a Administração escapar da observância do princípio da primazia da materialidade subjacente ao actuar no âmbito da “sua” discricionaridade legalmente prevista.

Ora, se assim é, como pode este poder discricionário querer revestir uma outra natureza, a que chamou “discricionaridade imprópria”?

Vejamos: a “discricionaridade imprópria” é definida pela doutrina[3] como aquela em que “um poder jurídico conferido por lei à Administração Pública houver de ser exercido em termos tais que o seu titular não se deva considerar autorizado a escolher livremente entre várias soluções possíveis, mas antes obrigado a procurar a única solução adequada que o caso comporta”. Ora, não é isto que hoje se passa com o poder discricionário da Administração? Não se encontra a Administração condicionada pela lei, pela competência, pelas regras e princípios gerais, eles próprios, legal (cfr Código do Procedimento Administrativo) e constitucionalmente consagrados? Não está a discricionaridade administrativa já condicionada à obtenção do resultado mais adequado para o cumprimento de todo o espectro jurídico expectável, incluindo o da prossecução do interesse público? Não está já pois a Administração, no uso devido dos seus poderes discricionários obrigada à procura da “única solução adequada que o caso comporta” (ainda que, maxime, seja no uso do poder de non facere, se objectivamente for essa a decisão mais adequada, se legalmente prevista)?

E, se assim é, das duas uma:

- Ou não há poder discricionário da Administração, havendo apenas discricionaridade imprópria; ou

- A discricionaridade imprópria reconduz-se pela definição à própria discricionaridade, pelo que não faz sentido falarmos dela.

Salvo, claro está, se estivermos perante um caso de esquizofrenia da própria discricionaridade. Uma espécie de sintoma de “Dr Jekyll and Mr Hyde[4] de que padecerá o poder discricionário se e quando analisado desta forma.





[1] In Prof. Doutor Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 2º edição, 2014, pág. 92.
[2] Sub-citação do anterior, no mesmo local, de Rogério Soares, in Direito Administrativo, p. 64 em citação de Vieira de Andrade, in O Ordenamento Jurídico Administrativo, pp. 46-47
[3] Tomemos a definição do Prof. Freitas do Amaral em ob. citada., p. 92.
[4] Citação adaptada e corrigida para português (de Portugal) de https://pt.wikipedia.org/wiki/Strange_Case_of_Dr_Jekyll_and_Mr_Hyde: Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde (O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde) é uma novela gótica, com elementos de ficção científica e terror, escrita pelo autor escocês Robert Louis Stevenson e publicada originalmente em 1886. Na narrativa, um advogado londrino chamado Gabriel John Utterson investiga as estranhas ocorrências entre o seu velho amigo, Dr. Henry Jekyll, e o malvado Edward Hyde. A obra é conhecida pela sua representação vívida do fenómeno de personalidades múltiplas, quando numa mesma pessoa existem tanto uma personalidade boa quanto má, ambas muito distintas uma da outra. O impacto do romance foi tal que se tornou parte do jargão inglês, com a expressão "Jekyll e Hyde" usada para indicar uma pessoa que age de forma moralmente diferente dependendo da situação.


De: Rodrigo Alexander Davidson de Sousa-Pinto (TAN7/aluno nº 2929)

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