A origem da noção de imparcialidade vem do Direito Processual e da pratica dos tribunais, existindo uma imparcialidade dos juízes, visto que com duas partes com interesses em disputa, era necessário existir um terceiro com autoridade detentor de uma posição acima das partes, sem tomar partido de nenhuma.
No código de processo administrativo dispõe sobre o exercício justo e imparcial que a Administração na sua actividade, deva manter, em relação a todos, devendo tomar decisões com base em critérios objectivos e do interesse publico, adequados as suas funções, longe de esferas de influencia de interesses sejam estes pessoais ou políticos.
"Os agentes administrativos ajam de forma isenta e equidistante relativamente aos interesses e, jogo nas situações que devem decidir ou sobre as quais se pronunciam sem carácter decisório"
A mais recente jurisprudência vem atribuir relevância a imparcialidade e transparência da actuação administrativa.
O Princ. da imparcialidade possui duas vertentes:
Uma vertente negativa, que consiste na ideia de que os órgão e agente da A.P. estão impedidos de intervir em procedimentos que dizem respeito a questões do seu interesse, ou círculos familiares e relações de proximidade, a fim de excluir-se de suspeita na sua conduta.
Existindo uma situação de impedimento ou de suspeita, é obrigatório por lei a a substituição do órgão ou agente, por outro competente que tomará a decisão no seu lugar.( em situações de suspeita é apenas possível a substituição, tendo de ser requerida pelo mesmo órgão).
Existe uma divergência quanto ao sentido da lei sobre o assunto, se a lei deva ser interpretada a letra, ( não intervenção no processo de qualquer forma e ou momento); ou apenas serão proibidas as decisões e actos que levam a decisão final, sendo licitas actos meramente formais e neutros.
Uma vertente Positiva, que apresenta o dever da A.P. a ponderar todos os interesses públicos e privados, relevantes para decisão final, existindo uma obrigação de ponderação comparativa entre as partes, sendo possível por um juiz a anulação dos actos que tenham sido praticados sem a ponderação necessária, que pode ser detectada através de uma analise da fundamentação do acto decisório final.
Quais a sanções para a violação deste principio?
Segundo o CPA, todos os actos realizados por um órgão ou agente impedido de intervir podem ser anuláveis (actos ilegais). A não comunicação destes actos leva a uma falta disciplinar grave e a perda de mandato aos membros de um órgão autárquico envolvidos.
Portanto é justo dizer que este regime de imparcialidade esta ligado a justiça, criado para estabelecer uma relação de confiança na A.P., por parte dos cidadãos, na tomada de decisões que influenciam a sua esfera jurídica.
Guilherme Lopes nº26645
segunda-feira, 30 de maio de 2016
O Princípio da Legalidade nas Constituições Portuguesas
O princípio da
legalidade encontra-se consagrado na Constituição de República Portuguesa desde
a Constituição de 1976, embora a sua origem anteceda ao período liberal entre
os séculos XVIII e XIX.
Marcado pelo
corte com a política do Estado Absoluto (monarquia limitada) e do Estado
Polícia (monarquia absoluta), onde a existência de um poder total do monarca
(prerrogativa régia) fazia com que este não estivesse sujeito ao Direito, e
onde a intervenção do Estado no domínio privado era avassaladora, o período do
Estado Liberal abre caminho para a defesa da esfera social e individual,
limitando o poder estatal a nível jurídico e a nível político.
Competiu a
Rousseau, através do seu pensamento crítico feito à sociedade e ao poder
político, “teorizar” acerca da ideia do princípio da legalidade. Com base no
seu livro, “O Contrato Social” de 1762, onde o filósofo francês descreve a sua
teoria sobre o “mito do bom selvagem” - ideia de que o homem nasce livre e bom,
mas que é posteriormente corrompido pela sociedade - e a passagem de um “estado
natureza” ao “estado de sociedade”, emergem valores de garantia de igualdade e
liberdade sociais e individuais e forte crítica ao poder dos mais ricos e mais
fortes que conseguem, através de um “contrato social falso”, impor-se aos mais
podres e mais fracos. A dura batalha de Rousseau consistiu em, através de um
“contrato social honesto”, onde os homens existem todos por igual e livres,
mudar o regime político e o sistema de governo. “É um programa de ação política; é um projeto de Revolução; e é um
projeto de nova Constituição”[1],
apela Rousseau aos homens do futuro.
E, penso que com
a sua marca deixada na história do pensamento político e filosófico do seu
tempo, Rousseau chega aos nossos tempos com grande relevo.
O princípio da
legalidade abrange duas modalidades. São elas, a preferência de lei e a reserva
de lei.
“A primeira veda à administração que
contrarie o direito vigente, que em casa de conflito preferirá ao acto
administração em causa – preferência de lei. Na segunda, exige-se que a atuação
administrativa, mesmo que contrária ao direito, tenha fundamento numa norma
jurídica, à qual está reservada a definição primária das atuações possíveis –
reserva de lei.”[2]
Ainda sobre a
reserva de lei, esta divide-se em precedência de lei e reserva de densificação
normativa, ou seja, a existência de um “critério
de regulação da intensidade da normação legislativa: da intensidade mínima
postulada pela reserva de função (competência e fim) à intensidade máxima
exigida pela reserva parlamentar (vinculação, no essencial, do conteúdo) ”.[3]
É ainda
importante fazer referência à forma como foi tratado o princípio da legalidade
nos regimes autoritários de direita e nos sistemas comunistas.
Nos regimes
autoritários de direita, de que fez parte a Constituição Portuguesa de
1933, o princípio da legalidade continua a existir, mas com outros contornos. A
noção de legitimidade democrática dos séculos passados perdeu-se e configura-se
a subordinação da atuação administrativa ao poder executivo, ou seja, ao
Governo, que passa a legislar sob a forma de decretos-lei. Assim, o princípio
de legalidade torna-se uma garantia de proteção do Estado, sendo que só em
segundo plano atinge os particulares.
Em regimes
comunistas, o princípio da legalidade fica esvaziado da sua força
limitadora, passando a ser uma ferramenta de trabalho do partido único
(comunista). Fala-se, então, de uma legalidade comunista, onde a legitimidade
resulta da interpretação dos ditamos proferidos pela ideologia comunista.
Apesar de a sua
consagração constitucional só ter acontecido na Constituição de 1976, podemos
verificar que, ao longo dos textos constitucionais portugueses, há referência
não ao princípio da legalidade como o conhecemos no artigo 266º do CRP, mas à
ideia de conduta conforme a lei, seja ela geral ou especial.
Vejamos.
v Constituição de 1822
A)
Base
da Constituição
Secção II – Da Nação Portuguesa,
Sua Religião, Governo e Dinastia
18º - O seu Governo é a
Monarquia constitucional hereditária, com leis fundamentais que regulem o
exercício dos três poderes políticos
B)
Constituição
de 23 de Setembro de 1822
Título II – Da Nação Portuguesa,
e seu Território, Religião, Governo e Dinastia
Capítulo Único
Artigo 29 – O Governo da Nação
Portuguesa é a Monarquia constitucional hereditária, com leis fundamentais que
regulem o exercício dos três poderes políticos.
Artigo 30 – Estes poderes são
legislativo, executivo e judicial. O primeiro reside nas Cortes com dependência
da sanção do Rei (arts. 101º, 111º e 112º). O segundo está no Rei e nos
Secretários de Estado, que exercitam debaixo da autoridade do mesmo Rei. O
terceiro está nos Juízes.
Título VI – Do Governo
Administrativo e Económico
Capítulo I – Dos Administradores
gerais e das juntas de Administração
Artigo 217º - A lei designará
explicitamente as atribuições dos Administradores gerais e das Juntas de
administração; as fórmulas dos seus atos; o número, obrigações e ordenado de
seus oficiais; e tudo o que convier ao melhor desempenho desta
instituição.
Nesta fase, D. João VI era o rei de Portugal e o país vivia um momento
marcante para a história e para a política portuguesa. A Constituição de 1822
foi o primeiro texto constitucional depois do fim da monarquia absoluta, que
marcou o início da democracia parlamentar no nosso país. Deu-se após as
revoluções liberais, no Porto, e surgiu através dos trabalhos das Cortes Gerais
Extraordinárias e Constituintes.
O primeiro texto constitucional
teve influência das Constituições Francesas de 1871 e 1875 e da Constituição
Espanhola de Cádis de 1812 e mostrou-se embebida do espírito liberal da Europa,
trazido com os princípios de Liberdade, Igualdade e Fraternidade da Revolução
Francesa, em 1789.
A concretização do princípio da
separação de poderes foi uma realidade nesta Constituição que, apesar de ditar
a existência de três poderes (legislativo, executivo e judicial), continuava a
conferir ao Rei poder e supremacia. É a chamada monarquia limitada, referida
epígrafe, onde o representante do poder executivo detinha também funções
legislativas como o direito de veto suspensivo sobre as Cortes, embora fosse
obrigado a promulga-las desde que as Cortes voltassem a deliberar. Apesar de
tudo, a sua figura era praticamente inviolável e, nesse sentido, podemos
considerar que, nesta fase, ainda estaríamos longe do princípio da legalidade
como fundamento de garantia democrático, na medida em que o Direito à margem do
monarca.
v
Carta
Constitucional de 1826 de 29 de Abril de 1826
Título I – Do Reino de Portugal,
seu Território, Governo, Dinastia e Religião
Artigo 4º - O seu Governo é
Monárquico, Hereditário e Representativo.
Título V – Do Rei
Capítulo I – Do Poder Moderador
Artigo 71º - O Poder Moderador é
a chave de toda a organização política, e compete privativamente ao Rei, como
Chefe Supremo da Nação, para que incessantemente vele sobre a manutenção da
independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos.
A Carta Constitucional, que foi outorgada pelo rei D. Pedro IV (D.
Pedro I, do Brasil), teve a influência da Constituição Brasileira de 1824, da
Constituição Francesa de 1814 e, também, da anterior constituição portuguesa.
Esteve em vigor 72 anos e revelou-se muito menos revolucionária do que a
missiva anterior, mas manteve o caracter liberal trazido dos finais do séc.
XVIII.
A inovação na Carta
Constitucional é a criação do poder moderador que funciona como quarto poder e
através deve evidencia-se o princípio monárquico, pelo facto de o Rei deter
ainda mais poderes do que aqueles que o poder executivo lhe conferia.
Mantém-se a ideia de monarquia
limitada, onde apesar de todas as alterações, mantém o rei num lugar de destaque
face à lei e a subordinação do povo à lei e ao seu soberano.
v Constituição de 1838 de 4 de Abril de 1838
Título I – Do Reino de Portugal,
seu Território, Religião, Governo e Dinastia
Capítulo Único
Artigo 4º - O Governo da Nação
Portuguesa é Monárquico-hereditário e representativo.
A terceira constituição nasce da
revolução de setembro de 1836, abolindo a Carta Constitucional e fazendo entrar
em vigor, por dois anos, a primeira constituição. Em 1838 é, então, publicada.
Desaparece o poder moderador, deu ao rei o direito de veto absoluto e instituiu
a descentralização administrativa. Nesta época, estava no trono D. Maria II,
filha de D. Pedro IV.
v Constituição de 1911 de 21 de Agosto de
1911
Título I – Da Forma do Governo e
do Território da Nação Portuguesa
Artigo 1º - A Nação Portuguesa,
organiza em Estado Unitário, adota como forma de governo a República, nos
termos desta Constituição.
Naquela que foi a primeira constituição republicana portuguesa, a
Constituição de 1911 teve como fontes a Constituição Brasileira de 1891 e o
programa do Partido Republicano Português.
Apesar de ter durado por 100 anos, muitos historiadores afirmam que a
única mudança verdadeira foi a passagem do rei para presidente.
Nesta fase, o poder legislativo cabia ao Congresso da República que se
dividia na Câmara dos Deputados e no Senado. O poder executivo pertencia ao
Presidente da República e aos Ministros, estando o poder judicial sujeito aos
tribunais.
v Constituição de 1933
Título VII – Da Ordem Política,
Administrativa e Civil
Artigo 22º
Os funcionários públicos estão
ao serviço da coletividade e não de qualquer partido ou organização de
interesses particulares, incumbindo-lhes acatar e fazer respeitar a autoridade
do Estado.
A Constituição que prevaleceu durante o período de Estado Novo entrou
em vigor em 1933 e teve como influências a Constituição de 1911, a Carta
Constitucional e as Constituições alemãs de 1871 e 1919.
Este tipo de constituição, como já foi referido, coloca a ênfase no coletivo,
levando para segundo plano as necessidades individuais. Neste sentido, penso
que, o ideal do princípio da legalidade encontra-se mais distante do que nas
constituições anteriores.
v Constituição de 1976
É na Constituição de 1976, ainda
vigente em Portugal, que se consagra o princípio da legalidade.
Título IX
Administração Pública
Art. 267º (princípios
fundamentais)
2. Os órgãos e agentes
administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar com
justiça e imparcialidade no exercício das suas funções.
No nº 2 do artigo 266º da CRP
encontram-se vários princípios que em conjunto com os princípios inscritos no
nº 1 dão origem ao que se costuma chamar como medidas materiais da juridicidade
administrativa. Isto significa que, para além destes princípios elencados, há
lugar a outros.
Para além da subordinação à
Constituição como fonte máxima de direito nacional, há também o dever de
subordinação à lei e com isto ao princípio da legalidade que compreende duas
dimensões: em sentido negativo (ou primado da lei) e em sentido positivo (ou
precedência de lei).
O princípio da legalidade em
sentido negativo abrange todos os tipos de administração (central, regional e
local; direta, indireta e independente; coativa, prestadora, reguladora ou de
supervisão) e a atividade administrativa, sob pena de gerar ilegalidade.
Esta primeira configuração do
princípio da legalidade foi gerada pelo período liberal, onde o limite à
atuação administrativa era a lei (parlamentar), que tinha por objetivo a
proteção dos direitos das particulares. Isto deveu-se ao facto de coexistirem,
na época, dois tipos de legitimidade. Por um lado, a legitimidade do poder
executivo que, pela figura do rei, era uma legitimidade hierárquica e, por
outro, a legitimidade do poder legislativo, representado pelo Parlamento, que
era uma legitimidade democrática. Desta forma, a Administração Pública está submetida
“às ordens do soberano, depende hierarquicamente dele, e por isso pode fazer
tudo aquilo que ele lhe ordenar, exceto o que for proibido através de lei
votada no Parlamento”.[4]
No entanto, parece não ser tão
claro, nas notas nos professores Gomes Canotilho e Vital Moreira, a abrangência
do princípio da legalidade em sentido positivo.
“É controvertido saber se ele
vale em igual medida e com igual intensidade para a administração coativa e
para a administração de prestações e hoje, ainda, para a administração de
garantia”.
Reflete-se também sobre a ideia
de que talvez a Constituição fosse vista como lei, falando-se em execução
imediata ou direta ou constituição.
Lei refere-se num sentido amplo,
englobando lei da Assembleia da República, decretos-leis, decretos-legislativos
regionais, como também as normas de direito internacional e direito europeu.
(art. 8 CRP). Juntam-se a estes a vinculação aos próprios regulamentos
administrativos competentes. Neste seguimento, há a ressalvar que o princípio
da legalidade funda-se no princípio da juridicidade da administração, pois,
neste sentido, todo o direito é fundamento e pressuposto da atividade da
Administração.
A presente
Constituição sofreu algumas revisões constitucionais.
1.
Lei constitucional nº 1/82 de 30 de Setembro
§
Artigo 198:
Os artigos 266º e 267º passam a
constituir, respetivamente, os novos artigos 265º e 266º.
2.
Lei constitucional nº 1/89 de 8 de Julho
§
Artigo 173:
O nº 2 do artigo 266º é
substituído por:
2. Os órgãos e agentes
administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no
exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da
proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade.
3.
Lei constitucional nº 1/92 de 25 de Novembro –
sem alterações
4.
Lei constitucional nº 1/97 de 20 de Setembro
§
Artigo 180:
Ao nº2 do artigo 266º da
Constituição é aditada, in fine, a
expressão “e da Boa-Fé”
5.
Lei constitucional nº 1/2001 – sem alterações
6.
Lei constitucional nº 1/2004 – sem alterações
7.
Atual texto da Constituição
Art. 266º – Princípios
Fundamentais
1. A Administração Pública visa a prossecução
do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente
protegidos dos cidadãos.
2.
Os
órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e
devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da
igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.
O princípio da legalidade, tal como o próprio Direito
Administrativo, são relativamente recentes e isso é possível de ser verificado
pela análise aos textos constitucionais. Todos eles fizeram parte de momentos
importantes da história política não só do nosso país, mas da Europa. No fundo,
acabámos por seguir os modelos que foram surgindo nos países vizinhos,
aplicando-os à nossa realidade.
Apesar de, nos dias de hoje, ser consciente que a
atividade administrativa deva proceder conforme a lei em sentido amplo e que os
interesses dos particulares devem ser garantidos, esta ideia nem sempre foi um
dado adquirido. Na realidade, isso só ficou presente há 40 anos com a Revolução
de Abril. O longo período desde o liberalismo, passando pela República, até ao
Estado Novo privou os particulares de verem os seus direitos garantidos. Ou
ainda, a preocupação em dar lugar ao indivíduo na vida social, económica e
política foi feita paulatinamente ao longo das décadas. Exemplo concreto disso
foi a evolução do sufrágio.
E, mesmo em 40 anos, houve necessidade de alterar a
configuração do artigo que consagra o princípio da legalidade na Administração
Pública, pelo que se conclui que muito caminho ainda há a percorrer sobre os
direitos dos particulares perante a atuação do Estado.
Isabel Rodrigues nº 15613
[1] História
das Ideias Política, Diogo Freitas do Amaral, pág. 221
[2] Direito
Administrativo Geral, Tomo I, Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos, 1ª
edição, pág. 153
[3] Vieira
de Andrade, O Ordenamento Jurídico Administrativo, pág. 40
[4][4]
Curso de Direito Administrativo, Diogo Freitas do Amaral, 4ª edição, Vol. II,
Pág. 45
DO REGIME DOS PARECERES NO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO
O Código do Procedimento Administrativo
(doravante CPA), aprovado pelo Decreto-Lei n.o 4/2015, de
07 de janeiro tem no seu seio, artigos, nomeadamente os 91.º e 92.º, dedicados
ao regime jurídico dos pareceres, sendo que o mesmo regime é também citado no Título
I (regime comum) da Parte III que se prende com a questão do procedimento
administrativo. Ambos os artigos reproduzem o texto de artigos do CPA revogado; a saber, no caso do artigo 91.º do CPA, o
98.º e, no que se reporta ao artigo 92.º,
os n.os 1, 3 e
5 repetem o texto (com ligeiras
modificações) do artigo 99.º, n.os 1 a 3 do
CPA revogado. Os incisos 2, 4 e 6 do artigo 92.º do CPA apresentam
inovações em matéria parecerística.
Os pareceres
são estudos documentados sobre questões científicas, técnicas ou
jurídicas, cuja elaboração é da responsabilidade de
órgãos administrativos por determinação da lei ou do órgão responsável pelo
procedimento. Concomitantemente, a emissão dos pareceres resulta da prerrogativa
de um órgão administrativo de ter poderes de administração consultiva, e
cujo exercício é feito no âmbito de um procedimento administrativo, enquanto
trâmite necessário ou facultativo para a tomada da decisão sobre um determinado
assunto pelo órgão da administração ativa.
Como veremos
adiante os pareceres previstos em lei, consubstanciando-se como trâmite de
formação do ato conclusivo do procedimento, tomam a configuração de "pareceres
oficiais", mas tal facto não impede o órgão responsável pelo procedimento
de solicitar a sua emissão a trabalhador em funções públicas, impelindo,
destarte, a criação de um ato instrutório. Na verdade, a relação jurídica de
emprego público soçobrará, no exercício da função consultiva, quando o
trabalhador atue no procedimento para o desenvolvimento de funções no âmbito
das atribuições, competências e atividades reservadas – obrigando-o a ter
vínculo de emprego constituído por nomeação, integrando uma carreira especial
ou geral. A emissão de pareceres, em atividades não reservadas, deve ser exercida
por trabalhadores integrados na carreira de técnico superior, porquanto é a
estes que funcionalmente compete a elaboração de pareceres.
Quando se
fala em pareceres, cumpre, numa primeira instancia, distinguir entre pareceres
obrigatórios e não obrigatórios e pareceres vinculativos e não vinculativos,
devendo a leitura do seu regime ser interpretada conjuntamente. Vejamos,
Por
pareceres obrigatórios entende-se os que são exigidos por lei, sendo os restantes
pareceres – e por maioria de razão – não obrigatórios. Estes, na circunstância
de terem sido emitidos por órgãos administrativos comportam-se como
"pareceres oficiais", sobressaindo em sede de fundamentação dos atos
administrativos, mas revelando-se ineficazes para o efeito de contagem dos
prazos decisórios.
Já no que
diz respeito aos pareceres vinculativos, há a considerar que determinam que as
suas conclusões tenham de ser seguidas pelo órgão decisor, sendo os que
manifestam procedimento diverso, não vinculativos.
Quanto aos
pareceres obrigatórios e vinculativos, e porque são exigidos por lei, veem as
suas conclusões constituir-se como determinantes do conteúdo do ato final do
procedimento. Por outro lado, comportamento distinto têm os pareceres não
obrigatórios e vinculativos uma vez que, por não serem exigidos por lei, é a
sua emissão que vai determinar o conteúdo do ato final do procedimento.
No que
respeita aos pareceres obrigatórios e não vinculativos, cumpre dizer que,
embora sejam exigidos por lei, as suas conclusões não obrigam, contudo, o órgão
decisor a atendê-las para proceder à definição da situação jurídica a regular
pelo ato conclusivo do procedimento.
Finalmente,
quanto aos pareceres
não obrigatórios e não vinculativos cumpre declarar que não são exigidos mas
permitidos por lei, e a sua emissão não vincula o órgão decisor na formação do
ato conclusivo do procedimento.
Os pareceres
podem ser absoluta ou relativamente obrigatórios, atendendo aos efeitos
produzidos no procedimento em que uma norma legal exige a sua emissão, pela
violação do prazo para a sua pronúncia; assim, os pareceres absolutamente
obrigatórios são os exigidos por lei e cuja omissão da emissão, no prazo
legalmente previsto, impede a adiamento da decisão final do procedimento; já os
pareceres relativamente obrigatórios, embora exigidos por lei, ditam que a sua
não emissão no prazo legalmente previsto, não impede o prosseguimento do procedimento
(pareceres declarativos) ou determina a obrigatoriedade da emissão do ato
conclusivo do procedimento (pareceres constitutivos).
Em termos de
pareceres vinculativos podem os mesmos determinar o conteúdo do ato conclusivo
do procedimento, independentemente do sentido da pronúncia efetuada com a
consulta (procedimento vinculativo geral), ou «apenas quando as conclusões do mesmo determinam a emissão de um ato
conclusivo positivo ou negativo do procedimento» (procedimento vinculativo
especial ou conforme).
Assim
entendido, percebe-se a validade do verdadeiro poder decisório que assiste à
entidade que emite o parecer totalmente vinculativo, já que o seu parecer tem
um efeito conformativo na
decisão final, id est, ao órgão
principal não lhe restará senão respeitar o parecer elaborado, quer ele seja
favorável, quer seja desfavorável. Quanto aos pareceres parcialmente
vinculativos, dir-se-á que consistem na pronúncia sobre apenas alguns aspetos
presentes na pretensão formulada pelo órgão decisor.
Por regime
comum dos pareceres entendemos aquele
regulado no CPA, devendo as disposições contidas em outras leis, que regem de
forma diversa, ser vistos com o estatuto de regimes especiais. Naquele
normativo, os pareceres aí previstos ou em legislação especial são pareceres obrigatórios
e não vinculativos (cfr. artigo 91.º, n.o 2 do CPA). Assim, para que o parecer se
assuma como parecer não obrigatório ou de parecer vinculativo cumpre atentar na
existência no ordenamento jurídico de norma que expressamente preveja esse
regime.
Não há uma
posição consensual no que à natureza dos pareceres
obrigatórios e vinculativos diz respeito; efetivamente, o recurso à doutrina
estrangeira, particularmente à italiana tem acontecido como instrumento
capaz de desvendar o caráter de que são revestidos os pareceres vinculativos;
deste modo, há a evidenciar que pareceres são simples atos instrumentais, que, porque
praticados numa fase preparatória, não são passíveis de impugnação, porquanto o
seu formato de atos auxiliares não
lhes assegura a suficiente autonomia funcional. No que toca aos pareceres
vinculativos, assumem a qualidade de atos
híbridos por orientarem (e pré-fixarem) o conteúdo da decisão
final; não obstante, não são recorríveis dado que ainda se inserem numa fase
preliminar ao ato final. Relativamente aos pareceres revestidos de
vinculatividade são «autorizações à prática do
ato final, na medida em que a atividade da entidade consulente está dependente
do parecer solicitado, o qual deve seguir». Por seu turno, a doutrina
portuguesa também expõe as suas reflexões a este propósito: os pareceres, mercê
da sua qualidade vinculante, são atos jurídicos dotados de autonomia funcional, e, por
conseguinte, capazes de gerar efeitos jurídicos externos imediatos, daí advindo
a recorribilidade, característica que os destrinça dos demais tipos de
pareceres. Assim, o critério principal para apurar a natureza de um parecer
vinculante encontra o seu ponto vital na lesividade que é capaz de
causar ao interessado. De fixar ainda que o ato final
não pode ser praticado sem que o órgão consultado tome uma posição prévia que o
órgão consulente terá de acatar. Finalmente, um parecer vinculativo, é um
verdadeiro ato definitivo na medida em
que impele a entidade consultante a homologar as propostas que dele constem,
que carece dessa homologação para se tornar executório. Pelo exposto,
subjacente à natureza de um parecer obrigatório e vinculativo, está um ato
definidor da posição do órgão consulente cuja decisão final está comprometida
com a força jurídica deste tipo de pareceres. Por conseguinte, pode afirmar-se
que dado o ónus que um parecer desta natureza assume sobre a decisão final, ele
ultrapassa os meros atos instrumentais ou preparatórios, revestindo-se de uma
autonomia funcional, capaz de fazer dele um ato recorrível, face à lesão que é
passível de provocar no destinatário do ato do decisor final.
A
solicitação de consulta cabe ao órgão competente, que é o órgão responsável
pelo procedimento; no momento procedimental apropriado (de notar que o CPA não
fixa um prazo para a consulta, podendo ser estipulados em regimes especiais)
cumpre-lhe solicitar a emissão dos pareceres aos órgãos competentes para
garantir a tomada da decisão final do procedimento dentro do prazo legal de
decisão do mesmo (cfr. o artigo 92.º, n.o 2, conjugado com os aa. 56.º, 58.º e 59.º, todos do CPA). A omissão daquele
procedimento, determina a contaminação do ato conclusivo por um vício de forma.
Ao órgão
consulente cumpre assegurar que o órgão consultado emita o parecer no prazo de
30 dias, salvo quando por norma especial ou por razões objetivas (quando o
órgão consultado solicite a prorrogação do prazo de emissão do parecer) o
parecer deva ser emitido em prazo inferior ou superior, não podendo todavia
fixar prazo inferior a 15 dias e superior a 45 dias (cfr. o artigo 92.º, n.os 3 e 4 do
CPA). O encurtamento do prazo regra, se não fundamentado pelo órgão
consulente, não vincula o órgão consultado, permitindo-lhe a emissão do parecer
no prazo de 30 dias.
Caso se
esteja perante um parecer obrigatório (artigo
92.º, n.o 5 do CPA), a omissão da emissão do
parecer, determinará a continuação do procedimento; se porventura se tratar de
pareceres não obrigatórios tal infere-se do normal decurso do procedimento. Da
lei resulta a afirmação dos pareceres como trâmites ordenadores do procedimento, não se concretizando como
trâmites perentórios, atendendo à «possibilidade
de continuação do procedimento, pela sua omissão, e consequente emissão do ato
conclusivo do procedimento». Por conseguinte, a omissão do parecer
solicitado no prazo devido, embora violador do dever de pronúncia do órgão
consultado, parece apontar no sentido de uma mera "irregularidade".
Neste
âmbito, encontra-se a questão dos pareceres tardios, ou seja, os pareceres
emitidos findo o prazo para a sua emissão. O legislador admitiu a possibilidade
de adiamento do ato conclusivo do procedimento,
findo o prazo para a emissão do parecer. Assim, tratando-se de um parecer não
obrigatório, ao órgão decisor cabe cumprir o dever de decidir o caso concreto, mesmo
face à omissão do parecer. Nesta mesma
circunstância, a saber, o esgotar do prazo para a sua emissão e em caso de
parecer obrigatório ou vinculativo pode o órgão decisor decidir o procedimento,
mas, não tendo ainda emitido o ato conclusivo do procedimento, nada impede o
acolhimento do parecer tardio na sua formação. Dito
de outra forma, «salvo disposição em contrário, o dever de emissão do parecer não se
consome, com o esgotar do prazo para a sua emissão, mas permite que o órgão
decisor, entretanto já tenha emitido o ato conclusivo do procedimento, a quando
do recebimento do parecer tardio».
Ao órgão
consultado que possui competência consultiva (artigo 37.º do CPA) cumpre a emissão de parecer no prazo legal ou
no prazo fixado pelo órgão consulente. Nesse sentido, a solicitação de tal emissão
de parecer obrigatório será levada em conta em sede de contagem do prazo para a
decisão do procedimento. O legislador estipulou que o prazo regra de 90 dias
para a decisão dos procedimentos de iniciativa particular (artigo 128.º, n.o 1 do CPA)
se conta a partir da data da entrada do requerimento no serviço competente, a
não ser que, por disposição especial, se imponha o cumprimento de formalidades
especiais para a fase preparatória da decisão e fixe prazo para a sua conclusão
(artigo 128.º, n.o3 do CPA). Neste contexto, o parecer obrigatório
assume-se como uma "formalidade essencial", pelo que quando a lei
determine a emissão de parecer obrigatório – e não fixe prazo especial –,
dever-se-á entender que o prazo de 90 dias para a decisão do procedimento
iniciar-se-á com o esgotar do prazo de 30 dias para a emissão do parecer.
O conteúdo
dos pareceres deve ser fundamentado de facto e de direito, responder expressamente
a todas as questões indicadas na consulta, apresentando, para tanto, conclusões
(artigo 92.º, n.o 1 do CPA). Não se
descurou o facto de o órgão decisor do procedimento poder restringir a
fundamentação do ato administrativo ao conteúdo do parecer, pela aposição da
declaração de concordância (artigo
153.º, n.o 1 do CPA). A fundamentação veiculada
estritamente por adesão ao parecer não será aceitável quando aquele sustente
"opiniões divergentes quanto a verificação dos respectivos pressupostos
ou, então, quando se referir a opinião que tiver ponderado e criticado as
razões da opinião contrária" ou quando se
socorra o ato administrativo de vários pareceres e informações, "não sendo
tais elementos inteiramente coincidentes". O parecer fundamentado em
bases pouco consistentes, quando acolhido pelo ato administrativo, determina a
ilegalidade deste, por falta de fundamentação (artigo 153.º, n.o 2 do CPA).
Nas
situações em que o órgão consultado tenha a natureza de órgão colegial as
deliberações são acompanhadas das declarações de voto (artigo 35.º, n.o 3 do CPA).
Aos titulares
dos órgãos da Administração e os respetivos agentes fica vedada a possibilidade
de intervenção em procedimento administrativo ou em ato, quando tenham dado
parecer sobre a questão a resolver (artigo
69.º, n.o 1, alínea
d) do CPA), a menos que tenham
praticado a competência consultiva na qualidade de membro do órgão colegial, e
a emissão do parecer esteja prevista na norma aplicável (artigo 69.º, n.o 2, alínea b) do CPA).
Para lá da
questão da fundamentação do parecer outro aspeto deve merecer reflexão: a
imparcialidade a que o órgão consultado está obrigado. O órgão consultado não
pode em circunstância alguma ser induzido a opinar da forma que eventualmente a
Administração gostaria, tal como é inconcebível que sobre ele a Administração
tenha qualquer supremacia, capaz de coagir ou submeter o órgão consultivo a si.
Deste modo, a única relação passível de existir entre a entidade decisora e a
entidade consultiva é uma relação de cooperação e colaboração.
Ariana Nunes Paraíso, nº 22253
DA ANULAÇÃO
ADMINISTRATIVA NO NOVO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO
No comentário
que ora se apresenta, e tal como o próprio título prefigura, tentaremos
analisar a figura da anulação administrativa, figura que, registe-se,
exibe uma significativa inovação, introduzida pelo legislador; por este motivo,
e para se ter uma visão cabal das inovações trazidas pelo CPA de 2015, sempre
que se considerar oportuno ou necessário recorreremos ao postulado no regime do
CPA de 1991, anteriormente vigente.
A primeira inovação
digna de monta que nos traz a anulação administrativa anuncia-se logo na sua denominação
que se concretiza na autonomização da segunda das duas modalidades da revogação
dispostas no CPA de 1991; a saber, a revogação de atos válidos, por um lado, e
a revogação de atos inválidos, por outro. Assim, o que no CPA de 1991
funcionava como uma figura própria da revogação (entenda-se, “a revogação de
atos inválidos”) passa, agora, a constituir uma “espécie” autónoma,
reconduzindo-se a outro conceito distinto: a tradicional “revogação anulatória”
deixa, a partir deste momento, de representar legalmente uma verdadeira e
própria revogação.
De facto, e
nas palavras de MARCO CALDEIRA, à luz do novo CPA, a revogação passa a incluir
unicamente a prática de atos com vista à cessação dos efeitos de atos “por razões de mérito, conveniência ou
oportunidade”, sendo a anulação administrativa, por seu turno, definida
como “o ato administrativo que determina
a destruição dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade”[1].
É o próprio legislador quem assume esta alteração de
denominação como pretendendo essencialmente seguir a “generalidade da doutrina dos países europeus”, confissão esta que
mereceu acesas críticas por parte de diversos Autores mormente pelo seu “sentido claramente estrangeirizante” ou por ser um caso – de “rutura
com a longa tradição existente no Direito Administrativo português” , entre
outras[2].
O objeto da anulação administrativa, consubstancia-se,
desde logo na sua definição que o mesmo há-de ser um “outro ato”, obviamente “inválido”,
uma vez que só assim se constitui como uma verdadeira anulação e não como uma revogação. Porém, à semelhança do que já
dispunha o CPA
de 1991, também o novo CPA prevê a impossibilidade de anulação de determinados
atos inválidos por parte da Administração. Então, e atendendo ao constante no artigo 166.º, n.º 1 do CPA, não podem
ser objeto de anulação administrativa (nem de revogação) os atos nulos, os atos
anulados contenciosamente e os atos revogados com eficácia retroativa. Na base
desta disposição legal está a própria natureza das coisas e assume os seguintes
contornos: quanto aos atos nulos, a explicação reside no facto de, atendendo ao
desvalor de que enfermam, tais atos não produzirem quaisquer efeitos jurídicos,
pelo que não podem ser destruídos[3]: daí não poderem ser alvo de
anulação administrativa (ou judicial) mas apenas e só objeto de declaração de
nulidade; no que respeita aos atos anulados contenciosamente e aos atos
revogados com eficácia retroativa não podem ser anulados porque os efeitos que
produziram não só já cessaram como foram expurgados do ordenamento jurídico com
eficácia retroativa, tudo se passando, portanto, em princípio, como se tais atos nunca tivessem sido praticados[4].
Deste modo, só os atos que sejam ilegais, mas que
sejam meramente anuláveis, podem ser passíveis de anulação administrativa, com
vista à destruição dos seus efeitos, ou dito de outra forma, a anulação apenas
pode incidir sobre atos anuláveis, e
não sobre atos nulos. Nesta sequência, vale a questão sobre se nos atos (ou nos
casos) a que se refere o artigo 163.º,
n.º 5 do CPA, para além dos apontados no artigo 166.º, n.º 1, estamos perante situações de “insusceptibilidade”
(ou impossibilidade legal) de
anulação administrativa. Há ainda a considerar três situações em que “não se produz o efeito anulatório”, a
saber, o conteúdo do ato anulável não possa ser outro, por o ato ser de
conteúdo vinculado ou por a apreciação do caso concreto apenas permitir
identificar uma única solução como legalmente possível; o fim visado pela exigência
procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via; ou quando
se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício que o torna
anulável, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo, isto após a configuração
da anulabilidade como desvalor-regra (e, simultaneamente, residual, por
exclusão de partes) e do estabelecimento de que o ato anulável produz efeitos jurídicos,
que podem ser destruídos com eficácia retroativa mediante anulação
administrativa ou judicial. Considera-se, aqui, o princípio do aproveitamento
do ato administrativo, aqui disposto como forma de limitação da anulação. O que
não deixa de suscitar alguma surpresa, porquanto a escolha do legislador vai no
sentido de optar por tal princípio e a dar-lhe foro de lei, isto é, estamos
perante uma auto-derrogação legislativa.
Este facto é tanto mais surpreendente uma vez que a
própria jurisprudência administrativa tem vindo, nalgumas ocasiões, a tentar
restringir as possibilidades da sua invocação por parte da Administração, tendo
mesmo o Supremo Tribunal Administrativo, afirmado que, “Estando as entidades públicas subordinadas
ao princípio da legalidade (art.º 266, n.º 2, da CRP e art.º 3 do CPA) é seu
dever estrito cumprir escrupulosamente aquela determinação legal, e não
colocar-se, como se verifica amiudadas vezes, (...), numa posição marginal ao
escolher, arbitrariamente, as situações em que cumpre e aquelas outras em que
decide não cumprir, para depois vir invocar princípios jurisprudenciais”[5].
Outro aspeto que causa alguma estranheza prende-se com
a identificação dos destinatários-aplicadores deste princípio. Deve
considerar-se, ainda, malgrado ser contrário ao que tantas vezes é afirmado na
jurisprudência, o princípio do aproveitamento do ato “[n]ão é um princípio processual”. Além disso, não só o preceito em
causa abrange os Tribunais Administrativos e a Administração como o número anterior
ao que consagra tal princípio se dirige unicamente à Administração: ora, a
sequência e ordenação sistemática dos preceitos, não sendo elementos decisivos,
apresentam-se como sugestivos o que, concomitantemente, coloca a dúvida sobre
se também a Administração será destinatária-aplicadora do princípio em causa.
O artigo 169.º,
n.º 1 do CPA refere que a iniciativa da anulação administrativa pode ser
levada a cabo oficiosamente, por iniciativa espontânea da Administração, ou na
sequência de pedido nesse sentido formulado por interessados. No segundo caso,
o pedido de anulação pressupõe uma reclamação ou recurso administrativo: se a
lei confere aos interessados o direito de impugnar os atos administrativos
perante a Administração, nomeadamente solicitando a sua anulação, impõe que tal
direito seja exercido mediante reclamação ou recurso, consoante os casos.
No que toca à competência, o artigo 169.º do CPA afirma que são competentes para proceder à
anulação administrativa o órgão que o praticou e o respetivo superior
hierárquico (n.º 3); o órgão
delegante ou subdelegante, bem como o delegado ou subdelegado, relativamente a
atos praticados ao abrigo de delegação ou subdelegação de poderes (n.º 4); o órgão que exerça poderes de
superintendência ou de tutela sobre o órgão autor do ato, mas isto apenas
quando a lei expressamente o permita (n.º
5); o órgão competente para a prática do ato, nos casos de atos
administrativos praticados por órgão incompetente (n.º 6).
Em termos de
forma e de formalidades da anulação administrativa, o CPA é relativamente parcimonioso,
estabelecendo, um princípio de paridade
ou equiparação de formas (entre o ato
anulado e o ato que procede à sua anulação).
Assim, e salvaguardado o disposto em norma especial, tal ato deve assumir
a forma legalmente prescrita para o ato anulado, sendo que, atendendo a
situações legalmente previstas, o ato de anulação administrativa deve observar
a mesma forma adotada pelo ato anulado.
Quanto às formalidades, o princípio da paridade ou da
equiparação não é levado tão longe, uma vez que o CPA mas apenas as “que se mostrem indispensáveis à garantia do
interesse público ou dos direitos e interesses legalmente protegidos dos
interessados”; tal posição, por nem sempre ser óbvia a identificação das
formalidades “indispensáveis” em cada
caso, conduz, em última instância, a alguma insegurança.
O aspeto
mais relevante do regime da anulação administrativa no novo CPA, e o que na sua
essência mais se distancia do regime legal da revogação anulatória previsto no
artigo 141.º do CPA de 1991, encontra-se no artigo 168.º, que consagra uma multiplicidade de prazos nos quais
um ato administrativo pode ser anulado pela Administração. Com efeito, se é
certo que “[o]s atos anuláveis [só] podem ser anulados pela Administração nos
prazos legalmente estabelecidos”, a verdade é que tais prazos, como se
verá, atendem a uma multiplicidade de fatores, como o vício que inquina o ato,
o facto de estarmos (ou não) perante um ato constitutivo de direitos, a
circunstância de o ato ter ou não sido impugnado jurisdicionalmente ou a boa ou
má fé do beneficiário do ato[6].
Da análise
dos prazos gerais prefigurados nos nos
1 a 4 do artigo 168.º, em articulação
com outros aspetos, resulta a perceção de algumas conclusões relativamente a
este normativo e que a seguir se explanam. Vejamos,
Numa primeira
instância, há a registar que o legislador consagrou um prazo de seis meses para
a Administração anular um ato anterior, o que faz depender o início da contagem
desse prazo, já não da data da sua prática, mas sim da data do conhecimento da
causa da sua invalidade por parte do órgão competente ou, nos casos de
invalidade resultante de erro do agente, da data da cessação desse erro
Outra
conclusão respeita ao valor atribuído pelo legislador à boa-fé do particular, vendo-a
como elemento a ter em conta no decurso e na contagem do prazo para a
consolidação do ato de que aquele é destinatário e, tal como no ponto anterior
o modelo inspirador foi a Lei do Procedimento Administrativo Alemã. Aí também
está presente a ideia de que o particular não pode contrapor à anulação a sua confiança
na manutenção do ato se o mesmo foi obtido através de engano doloso, ameaça ou
suborno ou com base em dados no essencial inexatos ou incompletos, bem como
quando o particular conhecia a invalidade do ato ou não a conhecia por culpa
grave, defendendo-se a ideia de que “o
valor da segurança jurídica apenas deve ser prosseguido para proteção da
confiança do administrado na atuação da Administração, e não para premiar
fraudes ou consolidar o resultado de crimes perpetrados pelo administrado!”.
Outra
inferência prende-se com a compatibilização do regime de revogação anulatória
estabelecido no ordenamento jurídico interno face ao Direito da União Europeia,
necessária e nascida da constatação de há muito que percebia que «o regime nacional da revogação de atos
administrativos era incompatível com as exigências europeias nesta matéria».
O Direito da União Europeia impõe-se às Administrações nacionais e assim, se um
ato administrativo violar uma norma europeia, o seu prazo de revogação/anulação
será determinado pelo Direito da União Europeia e não pelo Direito interno do
Estado-membro.
A
circunstância de um ato ter sido objeto de impugnação contenciosa e o processo
judicial ainda se encontrar a correr os seus termos, sem que o Tribunal de
primeira instância se tenha ainda pronunciado sobre o mérito da pretensão
anulatória e o subsequente alargamento do prazo para a anulação administrativa,
prende-se com outra dedução relevante. O que estava previsto no artigo 141.º,
n.º 1 do CPA de 1991[7], deu lugar ao postulado no
artigo 168.º, n.º 3 do novo CPA,
isto é, permite que a anulação administrativa tenha lugar até ao “encerramento da discussão”, o que
clarifica uma questão controversa que se colocava a propósito da articulação
entre o artigo 141.º, n.º 1 do CPA e o artigo 64.º, n.º 1 do CPTA, considerando-se,
por isso que, neste aspeto o legislador consagrou “a melhor opção”.
Noutro
sentido, este CPA materializando a combinação de múltiplas variantes, revela-se
muito mais complexo do que o regime do CPA de 1991, complexidade essa incontornável
no seio de um regime que se pretende mais amplo, mas portadora de graves
inconvenientes para a segurança jurídica, tanto mais quando lidamos com uma
matéria desejavelmente objetiva e transparente.
Outra apreciação
a destacar é indissociável da ênfase do regime da anulação administrativa do
novo CPA assentar na maior dificuldade na consolidação dos atos
administrativos, mesmo os constitutivos de direitos[8], com o consequente aumento
da Administração dita “agressiva” e o inevitável enfraquecimento da esfera
jurídica dos interessados.
Ainda que não tendo e conta
a posição e tutela dos interessados , pode entender-se como consensual que a
possibilidade de a Administração, regra geral, poder anular atos que já se
tornaram insuscetíveis de impugnação contenciosa e dentro de um prazo máximo
que pode ir até cinco anos, viabiliza uma instabilidade constante na definição
das situações jurídicas reguladas ou afetadas por cada ato administrativo,
sobretudo atendendo a que não é emergente à decisão de anulação uma ponderação
de interesses, um reconhecimento de efeitos produzidos pelo ato anulado, que apenas
os danos anormais provocados pela anulação são indemnizáveis e que não foi contemplada
qualquer norma transitória que acautelasse as situações já existentes à data da
entrada em vigor do CPA e que, por conseguinte, tais prazos se aplicam também “aos atos administrativos que, expressando
relações jurídicas de execução continuada, ainda hoje produzem efeitos”[9]. Justificável que possa
ser este alargamento significativo dos prazos e situações em que é permitida a
anulação administrativa com base no princípio da legalidade, há que afirmar que,
por um lado, também outros princípios, como os da proteção da confiança e da
segurança jurídica, gozam de dignidade constitucional idêntica à daquele
primeiro princípio e, por outro lado, tal relevo da proteção da legalidade e na
reconstituição do ordenamento jurídico violado não tem apresentação coerente ao
longo de todo o CPA, menos considerável pela manutenção da anulabilidade como
desvalor-regra do ato administrativo ilegal ou pela ausência de consagração
expressa de um dever de anulação do ato, mas sobretudo pela consagração
expressa do princípio do aproveitamento do ato administrativo (cfr. artigo 163.º, n.º 5)[10] e, ainda mais, pela
eliminação das chamadas “nulidades por natureza”, mediante a supressão da
cláusula geral de nulidade anteriormente prevista no artigo 133.º, n.º 1 do CPA
de 1991.
Falando da
anulação administrativa, há a considerar os efeitos retroativos por si
produzidos, eliminando todos os efeitos produzidos pelo ato anulado desde o
momento da sua prática. Daí resulta que os atos anulatórios gozem de uma retroatividade natural ou por natureza, de
acordo com o princípio da legalidade. A anulação
de um ato só é pertinente se se pretende destruir os seus efeitos; se estes
efeitos já cessaram, a anulação só se compreende se for retroativa, abarcando
os efeitos passados do ato, buscando a reconstituição da situação que existiria
caso aquele ato nunca houvesse sido praticado. No entanto, o CPA admite que a
anulação não tenha eficácia retroativa quando houver lugar ao estabelecimento
de uma solução diferente, em “disposição
especial”, ou no caso de o autor da anulação determinar, na própria
decisão, atribuir à anulação eficácia meramente para o futuro, se o ato se
tiver “tornado inimpugnável por via
jurisdicional”.
Neste quadro legal a Administração detém uma maior
capacidade de delinear os efeitos do ato anulatório em função das
circunstâncias do caso concreto e, em virtude disso, apresentar uma solução
materialmente mais justa do que um esquema rígido que impusesse, sempre e em qualquer caso, a todo o custo,
a retroatividade na anulação administrativa, atendendo, contudo, à
impossibilidade de a anulação ter sempre efeitos retroativos o que, neste
particular, acaba por aproximar as figuras da anulação administrativa e da
revogação stricto sensu.
Em termos de consequências da anulação administrativa,
uma crítica é apontada ao legislador. Com efeito, a sua regulação é apelidada
de pouco original e na sua essência replicadora do teor artigo 173.º do CPTA[11].
A “duplicação” de normas, parece estar subjacente à pretensão de o legislador enfatizar
que, no caso de anulação de um ato administrativo, as consequências inerentes são
fundamentalmente idênticas, independentemente daquela resultar de um ato da
própria Administração ou de decisão jurisdicional proferida por um Tribunal
administrativo e transitada em julgado[12].
Destarte, o nº1 do artigo 172.º do CPA prefigura
que a anulação administrativa constitui a Administração, numa primeira via, no
dever de reconstituir a situação que existiria caso o ato anulado não tivesse
sido praticado e, bem assim, no dever de dar cumprimento aos deveres que não
tenha cumprido com fundamento naquele ato, por referência à situação jurídica e
de facto existente no momento em que deveria ter atuado[13].
Não obstante,
a lei também aponta para o facto de à Administração assistir a possibilidade de
praticar um novo ato administrativo, quer por via da ratificação, reforma ou
conversão do ato anteriormente praticado, quer pela alteração desse ato ou pela
sua substituição[14]
por um ato válido com o mesmo conteúdo.
Noutro prisma, e perante o exposto, a anulação
administrativa pode conduzir a que a Administração, em alguns casos, tenha o
dever de indemnizar os interessados que tenham sido lesados em virtude do
desaparecimento do ato anulado. Esta obrigação tem lugar em, pelo menos, dois
casos distintos: no caso de anulação de um ato constitutivo de direitos e, em
segundo lugar, a Administração deverá também indemnizar os beneficiários de
boa-fé de atos consequentes (do ato anulado) praticados há mais de um ano,
pelos danos que sofram em consequência da anulação.
De facto, o
novo regime da anulação administrativa caracteriza-se, enfim, por, em
determinados aspetos, prosseguir uma linha de continuidade com o regime da
revogação (anulatória) prevista no CPA de 1991 e de, por outro lado, ostentar
soluções de rutura que se revelam ao intérprete como desafios complexos. Ora, este
é um quadro legal mais completo e mais complexo que aponta para o primado do «princípio da legalidade sobre a estabilidade
das situações jurídicas».
[1] Cfr. CALDEIRA, Marco, A figura da “Anulação Administrativa” no
novo Código de Procedimento Administrativo” de 2015, in COMENTÁRIOS AO NOVO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO, pág.
646
[2] Cfr. CALDEIRA, Marco, A figura da “Anulação Administrativa” no
novo Código de Procedimento Administrativo” de 2015, in COMENTÁRIOS AO NOVO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO, pág.
647
[3] Cfr. CALDEIRA, Marco, A figura da “Anulação Administrativa” no
novo Código de Procedimento Administrativo” de 2015, in COMENTÁRIOS AO NOVO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO, pág.
650
[4] Cfr. CALDEIRA, Marco, A figura da “Anulação Administrativa” no
novo Código de Procedimento Administrativo” de 2015, in COMENTÁRIOS AO NOVO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO, pág.
650
[5] Cfr. AcSTA de 5 de março
de 2009
[6] Cfr. CALDEIRA, Marco, A figura da “Anulação Administrativa” no
novo Código de Procedimento Administrativo” de 2015, in COMENTÁRIOS AO NOVO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO, pág.
657
[7] “Os atos administrativos que sejam inválidos
só podem ser revogados com fundamento na sua invalidade e dentro do prazo do
respetivo recurso contencioso ou até à resposta da entidade recorrida”
[8] Cfr. CALDEIRA, Marco, A figura da “Anulação Administrativa” no
novo Código de Procedimento Administrativo” de 2015, in COMENTÁRIOS AO NOVO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO, pág.
669
[9] Cfr. CALDEIRA, Marco, A figura da “Anulação Administrativa” no
novo Código de Procedimento Administrativo” de 2015, in COMENTÁRIOS AO NOVO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO,
pp.669 e 670
[10] Cfr. CALDEIRA, Marco, A figura da “Anulação Administrativa” no
novo Código de Procedimento Administrativo” de 2015, in COMENTÁRIOS AO NOVO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO, pág.
670
[11] Cfr. CALDEIRA, Marco, A figura da “Anulação Administrativa” no
novo Código de Procedimento Administrativo” de 2015, in COMENTÁRIOS AO NOVO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO, pág.
673
[12] Cfr. CALDEIRA, Marco, A figura da “Anulação Administrativa” no
novo Código de Procedimento Administrativo” de 2015, in COMENTÁRIOS AO NOVO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO, pág.
673
[13] Cfr. CALDEIRA, Marco, A figura da “Anulação Administrativa” no
novo Código de Procedimento Administrativo” de 2015, in COMENTÁRIOS AO NOVO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO, pág.
674
[14] De notar que esta substituição corresponde
a uma renovação porquanto corrige os
efeitos produzidos pelo ato anulável, bem como os respetivos atos consequentes.
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